STEVENSON SOB OUTRA PERCEPÇÃO
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Em 1892, o escritor Robert Louis Stevenson publicou uma de suas novelas mais conhecidas entre os clássicos da
literatura de horror e ficção; e mesmo que a maioria dos seus cenários fossem
descritos em terras havaianas e samoanas ⸺ esta última onde passara seus últimos momentos de vida ⸺, não faltavam pitadas góticas e de cunho social nos
enredos tétricos que compunham a sua escrita; influência diametral da sua terra
natal (Escócia) e das mais diversas cidades e países pelos quais passou. Seus trabalhos ganharam a Sétima Arte e também os ambientes familiares, através das
telenovelas e seriados. No Brasil, o escritor fora referência para a criação do
personagem “Tião Galinha”, da novela “Renascer” de 1993 (Rede Globo), o qual
tinha uma garrafa contendo um demônio preso dentro dela. Mas, junto as demais
interpretações errôneas feitas de vários dos seus trabalhos, “O Demônio da
Garrafa” de Stevenson, também ganha ares controversos, assim como o “Médico e o Monstro”, também analisado resumidamente por esta página.
Robert Stevenson. Imagem: Revista Conexão Literatura
A estória do “Demônio da Garrafa” tem
princípio com o experiente marinheiro havaiano “Keawe” desembarcando em terras
estadunidenses, em São Francisco, no estado da Califórnia. Impressionado com a
beleza e riqueza do lugar, depara-se com um velho senhor o observando através de
uma janela tão transparente “que Keawe podia vê-lo como via um peixe na poça de
um recife (sic)”. O senhor o convida a conhecer a sua casa, deixando-o
impressionado com a beleza da residência.
Neste início, o escritor apresenta denotação nos altos padrões
sociais que compõem as divisões de classes, e que sempre foram algo a serem
vislumbrados pelos menos abastados ao longe e expostos como em uma vitrine aos
desalentados, fazendo-os desejarem, talvez o inalcançável.
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O velho conta-lhe o segredo que jaz
por trás da sua afortunada vida e apresenta-lhe uma garrafa “de aparência
leitosa (sic)” de tão branca, abrigando dentro dela, um ser demoníaco que
poderia lhe oferecer tudo que fosse desejado e solicitado. Porém, para adquirir
o artefato, tinha que se pagar um preço em dinheiro e, se não repassasse o
objeto para outra pessoa, após a sua morte teria que enfrentar os incessantes
tormentos do Inferno. Então, aqui Stevenson destaca implicitamente a necessidade sobranceira
da negociação e saturação dos opulentos, atribuindo valores erráticos por
cominação e inferiorizando os labores subsequentes aos altos cargos. Um detalhe
a se observar, é que a garrafa, que representa o trabalho, só poderia ser
vendida à outra pessoa por preço inferior ao que fora comprada, asseverando a desqualificação
dos demais labores.
Com a garrafa em mãos, depois de testar a sua incredulidade e atestar a
veracidade dos poderes do objeto, logo o jovem Keawe lançara o seu primeiro
desejo ao ar, de forma tácita, à medida que conversava com o ajudante de
escuna, alcunhado de “Lopaka”. O pedido do marinheiro não ia além de uma
réplica da mesma casa que conhecera o velho senhor de São Francisco, porém, construída com um
andar a mais. Neste ponto, vemos o desejo subentendido dos indivíduos que vivem em
função de contrair as mesmas coisas de outros, e que no passado os fizeram inferiorizados, no
entanto, com um anseio maior ao qual lhe fizeram acreditar não ser possível, fazendo-o se observar abaixo do considerado aceito por parcela significativa
da sociedade. Uma visão frívola da realidade existencial individual.
Ao chegarem ao Havaí, más notícias
circulavam a cidade do navegante Keawe, que rapidamente chegaram aos seus ouvidos: o seu tio
e primo haviam morrido em circunstâncias misteriosas e deixado uma herança recém-engordada,
junto às terras centradas nos locais apropriados à construção da sua almejada
Casa Brilhante ⸺ assim fora denominada a casa por ter degraus fulgentes. A
notícia repentina fez com que Keawe acreditasse que havia uma ligação entre o
que ele desejara e a tragédia familiar, fazendo-o observar que a cada desejo
realizado, uma consequência subsecutiva adviria ao posseiro da garrafa do mal.
Ele se livra da garrafa, vendendo-a ao ajudante Lopaka.
“As más notícias” e
mortes também podem ser vistas tal qual a segregação das pessoas em detrimento
das posses; e delas decorridas as aflições causadas pelo individualismo bruto.
A transferência de propriedade do objeto afiança o exclusivismo maléfico, ao
qual o ser humano se submete para que não sofra as dores dos seus desacertos,
desamparado.
Robert Stevenson. Imagem: elpais.com
O escrito ganha denotação subtendida a partir de um encontro inesperado entre Keawe e Kokua, uma jovem e bela mulher
que se banhava sem vestes no mar próximo à sua residência. O jovem havaiano se
mostra vislumbrado pela moça ⸺ que o retribui silenciosamente ⸺ e pede-a em
casamento ao seu pai. No entanto, algo que deveria ser celebrado, logo se torna
um tormento para o futuro marido de Kokua. Ao descobrir-se leproso, Keawe
embarca novamente em busca do artefato maldito, com a esperança de encontrar a
cura milagrosa e não ferir a sua amada de nenhuma forma.
Até este ponto,
podemos concluir que o seu desejo de protege-la e não infectá-la com a sua
doença o faz agir por amor e compaixão, o que não o é; a sua ação é
impulsionada por subjetividade e fundamentalismo erigido em seu ego, ao pensar que ela só o aceitaria se estivesse saudável. Ou seja: para satisfazer-se, deveria satisfazê-la. Um princípio do egotismo.
A procura irrefreável pela garrafa o
fez perceber que inúmeras pessoas haviam se beneficiado dos poderes dela e
passado adiante. O seu encontro com o derradeiro comprador do objeto o deixara
estático: um franzino homem aguardava pelo ato milagroso que salvaria a sua
alma do Inferno; e lá estava o homem disposto a entregar o seu espírito às
chamas ardentes por amor. Por apenas dois centavos de dólar, Keawe comprara a
garrafa e partira de imediato para os braços da sua amada, instantaneamente
curado da sua doença.
O ato de sacrificar-se para que a sua
amante não contraísse a enfermidade que o afligia o torna um altruísta e ao
mesmo tempo revela o egoísmo existente no ser humano, pois ele abre mão da sua
alma, mas intentando a recompensa carnal advinda da sua renúncia. Temos uma
dualidade conflitante na ação de se doar, provinda de um alguém que o faz com
propósito compensatório. Assim também age a personagem Kokua ao saber que ele
havia feito isto por ela, reforçando ainda mais o exclusivismo entre as partes.
O valor irrisório de dois centavos, pelo qual ele pagou a garrafa, o faz retornar
ao ponto inicial, onde apenas a sua admiração pela casa do senhor da janela não o levaria
aos percalços atinentes à coletividade, mas eles sobreviriam dos entraves das ações posteriores.
Por
Moisés Calado.