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terça-feira, 23 de maio de 2023
A MORTE DO DEMÔNIO: A ASCENÇÃO
sexta-feira, 10 de março de 2023
A TRAGÉDIA
Os ingleses, bem como os
espanhóis, já possuíam um teatro quando os franceses só tinham tablados.
Shakespeare, considerado o Corneille inglês, florescia mais ou menos na época
de Lope de Vega; criou o teatro. Tinha um gênio cheio de força e de fecundidade,
natural e sublime, sem a menor centelha de bom gosto e sem o menor conhecimento
das regras. Vou dizer uma coisa temerária, mas verdadeira: o mérito desse autor
perdeu o teatro inglês; há cenas tão belas, trechos tão grandiosos e tão terríveis
espalhados em suas farsas monstruosas, chamadas tragédias, que essas peças
foram sempre presenteadas com sucesso. O tempo, único responsável pela
reputação dos homens, acaba tornando respeitáveis seus defeitos. A maioria das
ideias bizarras e gigantescas desse autor adquiriu, depois de duzentos anos, o
direito de passar por sublime; quase todos os autores modernos o copiaram, mas
o que era êxito em Shakespeare resulta em fracasso nos outros. E podem
realmente crer que a veneração dedicada a esse antigo aumenta, à medida que se
despreza os modernos. A reflexão deveria mostrar que não se deve imitá-lo e o
insucesso desses copistas faz somente com que se creia que é inimitável.
Sabem que na tragédia “Mouro
de Veneza”, peça muito tocante, um marido estrangula sua mulher no palco e,
quando a pobre mulher está sendo estrangulada, grita que está morrendo
injustamente. Não ignoram que, em “Hamlet”, coveiros abrem uma cova bebendo,
cantando cantigas populares e contando sobre as cabeças dos mortos que
encontram piadas do tipo de gente de seu ofício. Mas o que poderá surpreender é
que essas tolices foram imitadas no reinado de Carlos II que era a época da polidez
e a idade de ouro das belas-artes. “Otway”, em sua “Veneza Salva”, introduz o
senador Antônio e a cortesã Naki no meio dos horrores da conspiração do Marquês
Bedmar. O velho senador Antônio realiza junto de sua cortesã todas as macaquices
de um velho devasso, impotente e fora do bom senso; imita o touro e o cachorro,
morde as pernas de sua amante, que lhe dá pontapés e chicotadas. Essas palhaçadas,
feitas para a canalha mais vil, foram retiradas da peça de Otway, mas deixaram
em “Júlio César” de Shakespeare os gracejos dos sapateiros e dos consertadores
de calçados romanos, introduzidos na cena com Brutus e Cassius. É que a tolice
de Otway é moderna e aquela de Shakespeare é antiga.
Sem dúvida vocês lamentam
que aqueles que lhes falaram até agora do teatro inglês e sobretudo desse
formoso Shakespeare só lhes tenham mostrado os seus erros e que ninguém tenha
traduzido qualquer desses trechos tocantes que pedem perdão por todas as suas
faltas. Poderia responder-lhes que é muito fácil contar em prosa os erros de um
poeta, mas é muito difícil traduzir os seus belos versos. Todos os rabugentos que
se erigem em críticos dos escritores célebres compilam volumes; preferiria duas
páginas que me desses a conhecer algumas belezas, pois manterei sempre, com as
pessoas de bom gosto, que há mais a aproveitar em doze versos de Homero e
Virgílio do que em todas as críticas feitas a respeito desses dois grandes homens.
Arrisquei traduzir alguns
trechos dos melhores poetas ingleses. Aqui está um de Shakespeare. Perdoem a cópia
em favor do original e lembrem-se, quando virem uma tradução, que só veem uma
fraca estampa de um belo quadro.
Escolhi o monólogo da
tragédia “Hamlet”, conhecida de todos e que começa com este verso:
“To be or not to be, that
is the question” (“Ser ou não ser, eis a questão”).
É Hamlet, príncipe da
Dinamarca, que fala:
“Fica. É preciso escolher
e passar num instante
Da vida à morte ou do ser
ao nada.
Deuses cruéis! Se existem,
iluminem minha coragem.
É preciso envelhecer sob
a mão que me ultraja,
Suportar ou terminar
minha desgraça ou minha sorte?
Quem sou eu? Quem me detém?
E o que é a morte?
É o fim dos nossos males,
é meu único asilo;
Após longos transportes,
é um sono tranquilo.
Dorme-se e tudo morre.
Mas um terrível despertar
Deve suceder talvez às
doçuras do sono.
Ameaçam-nos, dizem-nos
que esta curta vida
De tormentos eternos é
logo seguida.
Ó morte! Momento fatal! Terrível
eternidade!
Todo coração só a teu
nome se enregela, apavorado.
Oh! quem poderia sem ti
suportar esta vida,
De nossos padres
mentirosos abençoar a hipocrisia,
De uma indigna amante
incensar os erros,
Arrastar-se sob um
ministro, adorar sua altivez,
E mostrar os langores de
uma alma abatida
A amigos ingratos que
desviam a vista?
A morte seria demasiado
doce nesses extremos;
Mas o escrúpulo fala e
nos grita: ‘Parem!’
Proíbe a nossas mãos esse
feliz homicídio,
E de um herói guerreiro
faz um cristão tímido!”
Não acreditem que traduzi
o inglês palavra por palavra ao pé da letra; infelizes os que fazem traduções
literais, porque, ao traduzir cada palavra, enervam o sentido. É precisamente
nesse momento que se pode dizer que a letra mata e o espírito vivifica!
Voltaire ⸺ Cartas Filosóficas.
Texto e interpretação por
Moisés Calado.
Por Moisés Calado.
terça-feira, 28 de junho de 2022
O MERCADOR DE VENEZA E O AUTO DA COMPADECIDA: UMA CÓPIA?
A INFLUÊNCIA NA ARTE
No século 16, a antiga
Europa vivia sob rixas e intolerâncias entre as religiões predominantes.
Decerto, os judeus e os cristãos exprimiam as maiores contendas judiciais, se
comparadas as demais altercações de integrantes de outras religiões. “O Mercador
de Veneza”, do grande poeta e escritor William Shakespeare nos revela quão
fabulosa se tornara a escrita dele ao compor tal obra.
Em 1596, os cristãos e
judeus eram separados por indumentárias que os caracterizavam pertencentes as suas
religiões específicas, mas havia uma disparidade entre eles: judeus eram
obrigados a usarem turbas ou chapéus vermelhos como identificações. Veneza,
como a mais poderosa cidade-estado da época, tinha leis que separavam os
cristãos, alocando os judeus em guetos, nas periferias da urbe. As portas da
cidade eram fechadas e vigiadas pelos cristãos venezianos e os seus rivais
religiosos eram obrigados a usarem os trajes rubros se quisessem deixar a
cidade com intento de voltar. Em sua obra, William Shakespeare deixa claro ao público
a proveniência da narrativa e a desigualdade de tratamentos entre os religiosos:
o não direito a propriedade pelos judeus e a prática corriqueira da usura (prática de
emprestar dinheiro mediante juros), hoje, chamada de agiotagem, em termos jurídicos.
Como a maioria das obras shakespearianas,
a religião é algo manifesto e permeia a escrita do início ao fim. No entanto, o
suspense, a lascívia, a traição, a ganância, a morte ou a sua tentativa, o
erotismo e demais componentes facilmente encontrados na vida real, também
complementam esta magnífica grafia.
Bassanio, amigo fiel de
Antônio, um cristão e mercador abastado, apaixona-se por uma das mais belas,
ricas e cortejadas mulheres da cidade. Príncipes de todas as regiões partia das
suas terras em busca de conquista-la, juntamente com o seu dote, deixado pelo
seu falecido pai. Porém existiam condições para que a donzela fosse entregue
aos seus pretendentes. Havia três baús: um de ouro, um de prata e outro de
chumbo, todos grafados com frases enigmáticas. Dentro deles continham cartas de
despedidas, mas só um resguardava a imagem da pretendente; quem a achasse seria o
merecedor da bela mulher. O enredo, como um todo, passa-se em torno da busca e do
amor conquistado por Bassanio, assim como a promessa de pagar uma dívida a um
judeu usureiro que emprestara dinheiro a Antônio em troca de cortar a sua pele,
que ele oferecera como garantia caso não pagasse uma dívida de 3 mil Ducados em
ajuda ao seu amigo apaixonado.
A fortuna de Antônio se perdera
no mar junto aos seus navios naufragados e só lhe restara ser julgado para
pagar a dívida ao judeu usureiro. Após os votos de casamento, Bassanio partira
para tentar ajudar o seu amigo depois de receber uma carta que solicitava a sua
presença antes da morte, dita-se como certa. Em julgamento, a esposa de Bassanio,
travestida de homem, passa-se por um requisitado juiz e leva Antônio à
condenação. Entretanto, para que o pagamento da dívida fosse efetuado com a
pele do devedor ⸺ este que assinara uma promissória sem explicações
pormenorizadas ⸺, nenhuma gota de sangue deveria sair do corpo dele, fazendo-o
livrar-se da dívida.
Neste grandioso enredo
shakespeariano é impossível não perceber a influência direta ao nosso magnificente
romancista e dramaturgo Ariano Suassuna, na sua obra mais famosa: “O Auto da Compadecida”. Ariano
usara da mesma artimanha que o autor inglês na sua peça, quando oferecera uma “tira
de couro das costas de Chicó”, mas esta tinha que ser cortada sem que saísse um pingo de
sangue dele, fazendo com que o Coronel Antônio Moraes os fizesse ir embora com
a dívida saldada. As semelhanças entre as duas obras não se restringem a esta
parte, porém certamente é a passagem que mais nos chama a atenção e nos faz lembrar do Mercador de Veneza e O Auto da Compadecida como trabalhos análogos.
É sabido que as
genialidades dos dois dramaturgos e romancistas são inegáveis, contudo podemos observar que a
influência, mesmo sem intencionalidade, está impregnada no mais íntimo de qualquer criador
literário.
Por Moisés Calado.
MUAMMAR GADDAFI, O HOMEM QUE QUIS UNIFICAR OS POVOS
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