sexta-feira, 10 de março de 2023

A TRAGÉDIA





Imagem: Google. William Shakespeare.
 

Os ingleses, bem como os espanhóis, já possuíam um teatro quando os franceses só tinham tablados. Shakespeare, considerado o Corneille inglês, florescia mais ou menos na época de Lope de Vega; criou o teatro. Tinha um gênio cheio de força e de fecundidade, natural e sublime, sem a menor centelha de bom gosto e sem o menor conhecimento das regras. Vou dizer uma coisa temerária, mas verdadeira: o mérito desse autor perdeu o teatro inglês; há cenas tão belas, trechos tão grandiosos e tão terríveis espalhados em suas farsas monstruosas, chamadas tragédias, que essas peças foram sempre presenteadas com sucesso. O tempo, único responsável pela reputação dos homens, acaba tornando respeitáveis seus defeitos. A maioria das ideias bizarras e gigantescas desse autor adquiriu, depois de duzentos anos, o direito de passar por sublime; quase todos os autores modernos o copiaram, mas o que era êxito em Shakespeare resulta em fracasso nos outros. E podem realmente crer que a veneração dedicada a esse antigo aumenta, à medida que se despreza os modernos. A reflexão deveria mostrar que não se deve imitá-lo e o insucesso desses copistas faz somente com que se creia que é inimitável.

Sabem que na tragédia “Mouro de Veneza”, peça muito tocante, um marido estrangula sua mulher no palco e, quando a pobre mulher está sendo estrangulada, grita que está morrendo injustamente. Não ignoram que, em “Hamlet”, coveiros abrem uma cova bebendo, cantando cantigas populares e contando sobre as cabeças dos mortos que encontram piadas do tipo de gente de seu ofício. Mas o que poderá surpreender é que essas tolices foram imitadas no reinado de Carlos II que era a época da polidez e a idade de ouro das belas-artes. “Otway”, em sua “Veneza Salva”, introduz o senador Antônio e a cortesã Naki no meio dos horrores da conspiração do Marquês Bedmar. O velho senador Antônio realiza junto de sua cortesã todas as macaquices de um velho devasso, impotente e fora do bom senso; imita o touro e o cachorro, morde as pernas de sua amante, que lhe dá pontapés e chicotadas. Essas palhaçadas, feitas para a canalha mais vil, foram retiradas da peça de Otway, mas deixaram em “Júlio César” de Shakespeare os gracejos dos sapateiros e dos consertadores de calçados romanos, introduzidos na cena com Brutus e Cassius. É que a tolice de Otway é moderna e aquela de Shakespeare é antiga.

Sem dúvida vocês lamentam que aqueles que lhes falaram até agora do teatro inglês e sobretudo desse formoso Shakespeare só lhes tenham mostrado os seus erros e que ninguém tenha traduzido qualquer desses trechos tocantes que pedem perdão por todas as suas faltas. Poderia responder-lhes que é muito fácil contar em prosa os erros de um poeta, mas é muito difícil traduzir os seus belos versos. Todos os rabugentos que se erigem em críticos dos escritores célebres compilam volumes; preferiria duas páginas que me desses a conhecer algumas belezas, pois manterei sempre, com as pessoas de bom gosto, que há mais a aproveitar em doze versos de Homero e Virgílio do que em todas as críticas feitas a respeito desses dois grandes homens.

Arrisquei traduzir alguns trechos dos melhores poetas ingleses. Aqui está um de Shakespeare. Perdoem a cópia em favor do original e lembrem-se, quando virem uma tradução, que só veem uma fraca estampa de um belo quadro.

Escolhi o monólogo da tragédia “Hamlet”, conhecida de todos e que começa com este verso:

 

“To be or not to be, that is the question” (“Ser ou não ser, eis a questão”).

É Hamlet, príncipe da Dinamarca, que fala:

 

“Fica. É preciso escolher e passar num instante

Da vida à morte ou do ser ao nada.

Deuses cruéis! Se existem, iluminem minha coragem.

É preciso envelhecer sob a mão que me ultraja,

Suportar ou terminar minha desgraça ou minha sorte?

Quem sou eu? Quem me detém? E o que é a morte?

É o fim dos nossos males, é meu único asilo;

Após longos transportes, é um sono tranquilo.

Dorme-se e tudo morre. Mas um terrível despertar

Deve suceder talvez às doçuras do sono.

Ameaçam-nos, dizem-nos que esta curta vida

De tormentos eternos é logo seguida.

Ó morte! Momento fatal! Terrível eternidade!

Todo coração só a teu nome se enregela, apavorado.

Oh! quem poderia sem ti suportar esta vida,

De nossos padres mentirosos abençoar a hipocrisia,

De uma indigna amante incensar os erros,

Arrastar-se sob um ministro, adorar sua altivez,

E mostrar os langores de uma alma abatida

A amigos ingratos que desviam a vista?

A morte seria demasiado doce nesses extremos;

Mas o escrúpulo fala e nos grita: ‘Parem!’

Proíbe a nossas mãos esse feliz homicídio,

E de um herói guerreiro faz um cristão tímido!”

 

Não acreditem que traduzi o inglês palavra por palavra ao pé da letra; infelizes os que fazem traduções literais, porque, ao traduzir cada palavra, enervam o sentido. É precisamente nesse momento que se pode dizer que a letra mata e o espírito vivifica!



Voltaire ⸺ Cartas Filosóficas.

 

Texto e interpretação por Moisés Calado.

 

Por Moisés Calado.  


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