Os ingleses, bem como os
espanhóis, já possuíam um teatro quando os franceses só tinham tablados.
Shakespeare, considerado o Corneille inglês, florescia mais ou menos na época
de Lope de Vega; criou o teatro. Tinha um gênio cheio de força e de fecundidade,
natural e sublime, sem a menor centelha de bom gosto e sem o menor conhecimento
das regras. Vou dizer uma coisa temerária, mas verdadeira: o mérito desse autor
perdeu o teatro inglês; há cenas tão belas, trechos tão grandiosos e tão terríveis
espalhados em suas farsas monstruosas, chamadas tragédias, que essas peças
foram sempre presenteadas com sucesso. O tempo, único responsável pela
reputação dos homens, acaba tornando respeitáveis seus defeitos. A maioria das
ideias bizarras e gigantescas desse autor adquiriu, depois de duzentos anos, o
direito de passar por sublime; quase todos os autores modernos o copiaram, mas
o que era êxito em Shakespeare resulta em fracasso nos outros. E podem
realmente crer que a veneração dedicada a esse antigo aumenta, à medida que se
despreza os modernos. A reflexão deveria mostrar que não se deve imitá-lo e o
insucesso desses copistas faz somente com que se creia que é inimitável.
Sabem que na tragédia “Mouro
de Veneza”, peça muito tocante, um marido estrangula sua mulher no palco e,
quando a pobre mulher está sendo estrangulada, grita que está morrendo
injustamente. Não ignoram que, em “Hamlet”, coveiros abrem uma cova bebendo,
cantando cantigas populares e contando sobre as cabeças dos mortos que
encontram piadas do tipo de gente de seu ofício. Mas o que poderá surpreender é
que essas tolices foram imitadas no reinado de Carlos II que era a época da polidez
e a idade de ouro das belas-artes. “Otway”, em sua “Veneza Salva”, introduz o
senador Antônio e a cortesã Naki no meio dos horrores da conspiração do Marquês
Bedmar. O velho senador Antônio realiza junto de sua cortesã todas as macaquices
de um velho devasso, impotente e fora do bom senso; imita o touro e o cachorro,
morde as pernas de sua amante, que lhe dá pontapés e chicotadas. Essas palhaçadas,
feitas para a canalha mais vil, foram retiradas da peça de Otway, mas deixaram
em “Júlio César” de Shakespeare os gracejos dos sapateiros e dos consertadores
de calçados romanos, introduzidos na cena com Brutus e Cassius. É que a tolice
de Otway é moderna e aquela de Shakespeare é antiga.
Sem dúvida vocês lamentam
que aqueles que lhes falaram até agora do teatro inglês e sobretudo desse
formoso Shakespeare só lhes tenham mostrado os seus erros e que ninguém tenha
traduzido qualquer desses trechos tocantes que pedem perdão por todas as suas
faltas. Poderia responder-lhes que é muito fácil contar em prosa os erros de um
poeta, mas é muito difícil traduzir os seus belos versos. Todos os rabugentos que
se erigem em críticos dos escritores célebres compilam volumes; preferiria duas
páginas que me desses a conhecer algumas belezas, pois manterei sempre, com as
pessoas de bom gosto, que há mais a aproveitar em doze versos de Homero e
Virgílio do que em todas as críticas feitas a respeito desses dois grandes homens.
Arrisquei traduzir alguns
trechos dos melhores poetas ingleses. Aqui está um de Shakespeare. Perdoem a cópia
em favor do original e lembrem-se, quando virem uma tradução, que só veem uma
fraca estampa de um belo quadro.
Escolhi o monólogo da
tragédia “Hamlet”, conhecida de todos e que começa com este verso:
“To be or not to be, that
is the question” (“Ser ou não ser, eis a questão”).
É Hamlet, príncipe da
Dinamarca, que fala:
“Fica. É preciso escolher
e passar num instante
Da vida à morte ou do ser
ao nada.
Deuses cruéis! Se existem,
iluminem minha coragem.
É preciso envelhecer sob
a mão que me ultraja,
Suportar ou terminar
minha desgraça ou minha sorte?
Quem sou eu? Quem me detém?
E o que é a morte?
É o fim dos nossos males,
é meu único asilo;
Após longos transportes,
é um sono tranquilo.
Dorme-se e tudo morre.
Mas um terrível despertar
Deve suceder talvez às
doçuras do sono.
Ameaçam-nos, dizem-nos
que esta curta vida
De tormentos eternos é
logo seguida.
Ó morte! Momento fatal! Terrível
eternidade!
Todo coração só a teu
nome se enregela, apavorado.
Oh! quem poderia sem ti
suportar esta vida,
De nossos padres
mentirosos abençoar a hipocrisia,
De uma indigna amante
incensar os erros,
Arrastar-se sob um
ministro, adorar sua altivez,
E mostrar os langores de
uma alma abatida
A amigos ingratos que
desviam a vista?
A morte seria demasiado
doce nesses extremos;
Mas o escrúpulo fala e
nos grita: ‘Parem!’
Proíbe a nossas mãos esse
feliz homicídio,
E de um herói guerreiro
faz um cristão tímido!”
Não acreditem que traduzi
o inglês palavra por palavra ao pé da letra; infelizes os que fazem traduções
literais, porque, ao traduzir cada palavra, enervam o sentido. É precisamente
nesse momento que se pode dizer que a letra mata e o espírito vivifica!
Voltaire ⸺ Cartas Filosóficas.
Texto e interpretação por
Moisés Calado.
Por Moisés Calado.
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